Ambiência https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br O que está em jogo na nossa relação com o planeta Fri, 03 Dec 2021 21:06:25 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O bêbado e o comunista https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/21/o-bebado-e-o-comunista/ https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/21/o-bebado-e-o-comunista/#respond Mon, 21 Jun 2021 04:44:34 +0000 https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/WhatsApp-Image-2021-06-21-at-01.38.17-320x215.jpeg https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/?p=964 Para o filósofo francês Bruno Latour, “o escapismo é a principal ameaça no mundo. E, comparada a essa ameaça, todas as outras lutas convergem”.

Já a autora deste blog havia proposto que “é tempo de defender o óbvio, justamente porque não podemos mais contar com ele”. No entanto, para o empreendedor social Caetano Scannavino, uma ampla união em defesa de obviedades não bastará para responder ao negacionismo – da pauta climática à pandemia – promovido pelo governo. “Não será tentando contê-lo que vamos espantá-lo. É preciso ser mais louco que ele”.

“Como antítese a Bolsonaro, tem-se a oportunidade para acelerar a construção do verdadeiramente inovador e revolucionário”, defende Scannavino, em artigo publicado abaixo com exclusividade pelo blog.

A proposta sugere inovações ligadas a um desenvolvimento mais sustentável como saída imediata para as múltiplas crises do país, trazendo para o presente a chance de repensar paradigmas que já não dão conta de organizar a civilização.

Confira abaixo a íntegra do artigo.

O bêbado e o comunista

Por Caetano Scannavino*

– A Terra é plana! – chega o bebum.
– Que Terra plana que nada! A Terra é uma pirâmide! – retruca o comunista.
– Pirâmide? Você tá de porre! Qualquer um sabe que a Terra é redonda… – diz o bebum, já se afastando.

Não adianta subestimar, resistir ou argumentar com o bêbado chato na festa. A única forma de se livrar dele é se fazer ainda mais bebum. De dose dupla.

Em meio à terra arrasada ao longo do seu mandato, os que subestimam uma eventual reeleição de Bolsonaro só fazem bem a ele. Tampouco pode-se dizer que apenas uma frente ampla das oposições – os tais comunistas – bastaria para evitar uma recondução ao cargo por mais quatro anos.

É preciso deixar o rei nu.

Bolsonaro soube como ninguém se apropriar e manter o popularíssimo avatar antissistema, se aproveitando de uma sociedade com ojeriza do “mais do mesmo” da política e dos muitos que prometeram mudar o sistema e acabaram mudados por ele.

Vestido para matar, Bolsonaro veio para destruir, deixando para terceiros a tarefa do que colocar no lugar. Enquanto esgarça as instituições, lança como isca suas pérolas sem compromisso com a verdade ou o bom senso. As oposições mordem, sem que consigam ir além de resistir e reduzir danos.

E assim vai levando, com aquele ora mais ora menos terço de apoiadores – o suficiente tanto para desencorajar movimentos por impeachment, como para deixá-lo em 2022 com um pé no 2º turno – quando então se vangloriará do provável viés de “despiora” em relação à economia e à pandemia, após o fundo do poço alcançado neste ano.

Ainda que estes tempos nos tragam dificuldades de respirar, é preciso encontrar o oxigênio que nos foi cortado para inspirar mais do que união pela democracia – o que nos levaria a propor apenas a volta do que era.

As oposições que se dizem progressistas devem ser capazes de despir Bolsonaro desse avatar anti-establishment que opera milagres ao vender ares de inovação e mudanças a partir de ideias retrógradas e reacionárias, vindas de um congressista com quase 30 anos de baixo-clero, boa parte dele no PP de Paulo Maluf.

É hora de dobrar a aposta, como quando encontramos o bebum chato na festa. Não será tentando contê-lo que vamos espantá-lo. Teremos que extrapolar e ser mais louco que ele. Ser de fato progressistas.

Como antítese a Bolsonaro, tem-se aí a oportunidade para acelerar a construção do verdadeiramente inovador e revolucionário, ousando-se criar um novo establishment no lugar da terra arrasada.

Em vez de resistir ao chacoalhão das estruturas que criticávamos, temos a chance de reorganizá-las sob novos impulsos criadores. A crise pandêmica abriu ainda mais esta janela para adiantar o futuro e começar a pautá-lo desde já.

No campo trabalhista, por exemplo, ao invés de pararmos no tempo acomodados apenas na defesa da CLT de Vargas, os progressistas devem também chamar respostas para a inevitável substituição de vagas de trabalho por máquinas. Que tal trazer para a agenda o que já vem sendo debatido em países europeus, como a redução da jornada para 32 horas, com mais gente trabalhando, por menos tempo? Por sinal, uma medida cujos estudos apontam melhoras na mobilidade urbana, no clima, na conta de luz e na saúde, com a diminuição das faltas, sem comprometimento da produtividade.

O ajuste dos relógios ainda alavancaria a economia do lazer e da cultura, privilegiando o tempo para usufruir desses serviços ao invés de incentivar o consumismo material num planeta que não tem tido tempo – na correria que lhe impomos – para renovar seus recursos.

Os experimentos de redução da jornada de trabalho também se articulam com mecanismos de renda básica, associados a saídas inovadoras no campo previdenciário, com a expectativa de vida crescente. Que tal um Bolsa Família 2.0, mais robusto, numa mobilização nacional pela erradicação da extrema pobreza que garanta o mínimo para todos? A partir daí podemos criar uma competição mais justa no mundo do trabalho.

Que tal discutirmos o entendimento de empresas como entes de interesse público? A partir de exemplos como o Sistema B de “benefício”, ou o ESG, sigla em inglês para “ambiental, social, governança”? O debate nacional precisa incorporar esses pilares na análise dos investimentos, indo além das tradicionais métricas econômico-financeiras.

Ao invés de reprimir, que tal alavancar as iniciativas de economia compartilhada das favelas e comunidades rurais? Precisamos discutir as políticas públicas do futuro, que por vezes nascem nas margens e nas periferias, já denunciando o que não funciona no centro do sistema. Reunir essas inteligências também passa por fortalecer a participação social, os conselhos, os mecanismos de democracia direta, de proatividade cidadã na construção de políticas mais apropriadas às realidades dos que mais precisam delas.

No país líder em biodiversidade, em plena emergência climática global, a deixa está dada para contrapor um governo antiambientalista. Políticas de desmatamento zero, eficiência agrícola e polos industriais de biotecnologia e bioeconomia não só têm o potencial de movimentar trilhões de dólares para o país, como também pode nos posicionar na liderança da vanguarda mundial dos novos paradigmas de desenvolvimento.

Para sermos de fato progressistas, é preciso assumirmos a construção da agenda do futuro, que vai muito além dos exemplos acima e exige uma disposição imediata de ser mais louco que o bêbado, pautar ao invés de ser pautado e, assim, libertar-se da condição de refém de debates que param o país discutindo cloroquina ou voto impresso.

Se a melhor forma de prever o amanhã é construí-lo, essa é também a melhor estratégia para combater o exterminador do futuro: com mais doses de futuro.

*Caetano Scannavino é empreendedor social, coordenador da ONG Projeto Saúde & Alegria, com atuação na Amazônia.

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O dia depois de amanhã deve ter um preço para o carbono https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/22/o-dia-depois-de-amanha-deve-ter-um-preco-para-o-carbono/ https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/22/o-dia-depois-de-amanha-deve-ter-um-preco-para-o-carbono/#respond Thu, 22 Apr 2021 23:24:13 +0000 https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/09/Folhapress-320x215.jpg https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/?p=933 Os anúncios dos Estados Unidos, União Europeia, Japão e Canadá de que devem cortar cerca de metade das suas emissões de carbono até 2030 sinalizam ao mundo uma guinada na trajetória do clima global. As lições de casa dos países para que isso aconteça, no entanto, devem ser drásticas e começam literalmente no dia depois de amanhã.

Assim que for encerrada a Cúpula do Clima, na sexta (23), o restante do mundo já deve começar a cobrar dos países desenvolvidos os meios de implementação para a transição energética, que eles prometem financiar.

A coerência dos países ricos também será mais fiscalizada. O que antes era uma ponte avançada entre a política climática e as relações comerciais, passa agora a ser cobrado como um item básico do compromisso com o clima: o comércio global deve ser condicionado a critérios de sustentabilidade.

Para entender o anúncio das nações mais desenvolvidas do mundo, é preciso enxergar a estratégia geopolítica da pauta climática, sem reduzi-la a filantropia, publicidade ou reputação. O que a Cúpula do Clima aponta é uma reconfiguração da agenda global, em que o carbono se encaixa entre os eixos centrais.

É com essa movimentação que a desconfiança global, que pautava anúncios de metas tímidas e duvidosas no último dezembro, dá lugar à confiança para os compromissos de cortar as emissões pela metade até 2030, mesmo que a China se mantenha firme na posição de atingir o pico das suas emissões somente no fim da década.

Biden certamente não prevê ser atropelado por um crescimento chinês baseado em energias fósseis. O plano é torná-las inviáveis, deixando em atraso os países que optam por adiar a transição.

Se, por um lado, não há previsão de sanções comerciais por questões ambientais no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), os acordos bilaterais oferecem um caminho mais provável para que os países ricos associem suas metas climáticas à taxação de carbono, inibindo a importação de produtos ligados a combustíveis fósseis ou a desmatamento.

Além de desencadear a tendência da economia de baixo carbono no resto do mundo, a medida impediria a responsabilização desses países por emissões de carbono ‘compradas’ no exterior.

Embora a palavra “taxação” possa assustar um mercado global ainda dependente de energias fósseis, esse direcionamento pode ser fundamental para uma retomada econômica irrigada pelo desafio climático e que pode ganhar escalas para novos padrões até 2030.

Ela também pode ser o ‘chicote’ necessário para evitar uma espécie de “queima de estoque” promovida pelos setores dos combustíveis fósseis nos territórios onde eles seguirão liberados, especialmente em economias emergentes, como China, Rússia, Índia e Brasil.

Neste cenário, o Brasil ficará prejudicado até o fim de 2022, já que o projeto antiambiental do governo Bolsonaro ainda vai falar mais alto ao mundo do a nova encenação discursiva.

A chance de o país recuperar seu protagonismo ambiental nos próximos anos fica por conta da capacidade de outros atores – como empresas, ONGS, universidades e governos locais – para articular parcerias diretas com as fontes de financiamento nos Estados Unidos e na Europa. Uma saída resiliente que foi usada pelos americanos nos anos Trump e tem sido testada desde a eleição de Bolsonaro por aqui.

Botar um preço no carbono também implica na oferta de cenouras, tanto com incentivos fiscais aos setores menos poluentes, como pela valorização desses investimentos no mercado financeiro.

Se o carbono jogado na atmosfera vira um custo, os gases capturados de volta para o solo podem ser ativos negociados como títulos verdes no mercado. A busca de títulos sustentáveis, assim como o uso dos critérios ESG (ambientais, sociais e de governança, na sigla em inglês) e ainda a inclusão dos riscos climáticos na avaliação dos investimentos consolida no mundo financeiro uma visão bastante pragmática sobre as mudanças climáticas, cujo avanço gera incertezas incompatíveis com a busca de retorno financeiro.

Com a aproximação dos prazos e dos limites planetários, a conservação ambiental se revela garantidora do crescimento econômico, em vez de uma limitante. A alavanca deste momento para a economia global pode estar justamente na mobilização de recursos para fazer frente ao desafio climático.

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Isolar Bolsonaro deve ser parte da agenda climática de Biden https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/20/isolar-bolsonaro-deve-ser-parte-da-agenda-climatica-de-biden/ https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/20/isolar-bolsonaro-deve-ser-parte-da-agenda-climatica-de-biden/#respond Wed, 20 Jan 2021 21:22:50 +0000 https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/09/WhatsApp-Image-2019-09-20-at-17.14.16-1-e1569011638630-320x215.jpeg https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/?p=881 ANÁLISE – Não é realista esperar que o governo Bolsonaro se ajuste à mudança de governo nos Estados Unidos. Sua união a Trump era, afinal, ideológica e sem nenhum pragmatismo. Assim também deve funcionar seu antagonismo a Biden – só que o americano se beneficiará dessa rivalidade de forma pragmática.

Para voltar a figurar como mocinho na agenda internacional do combate às mudanças climáticas, os Estados Unidos devem incentivar o restante do mundo a apontar para o Brasil de Bolsonaro como o vilão da história.

A versão contada pelo presidente Bolsonaro deve alimentar a polarização, ajudando o protagonismo americano e trazendo dificuldades para a diplomacia brasileira (que, nos bastidores, ainda busca preservar as relações internacionais). No entanto, o comércio não deve ser atingido, segundo avaliações do governo federal.

De acordo com fontes do alto escalão do governo, não passam de pensamentos desejosos as expectativas de demissões de Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Ricardo Salles (Meio Ambiente).

Eles têm a confiança do presidente, apesar dos desgastes gerados nas relações com importantes parceiros comerciais, como a China, a União Europeia (que protela uma decisão sobre o acordo comercial com o Mercosul por conta da política ambiental brasileira) e com o sistema multilateral da ONU, especialmente nas negociações sobre clima e biodiversidade, nas quais o Brasil já tem figurado como pária.

A era Biden é vista com otimismo no Ministério da Agricultura, que conta com a separação entre as relações comerciais e o discurso ambientalista, já que o novo presidente americano tem anunciado sua prioridade às relações multilaterais.

O blog teve acesso a mensagens trocadas entre pessoas ligadas à administração da pasta. Uma delas diz que, o multilateralismo nos beneficia, pois no âmbito da OMC [Organização Mundial do Comércio] não estão previstas sanções comerciais por questões ambientais.

As regras já definidas pelos sistemas multilaterais trazem mais previsibilidade para as negociações brasileiras em comparação com acordos bilaterais com gigantes como Estados Unidos e China. O Itamaraty também estaria trabalhando para evitar que a OMC adote condicionantes ambientais para o comércio global.

A avaliação é confirmada por diplomatas brasileiros ouvidos pelo blog. Eles entendem que os Estados Unidos não se interessam por políticas que boicotem commodities associadas a desmatamento – uma ameaça crescente dos europeus sobre o Brasil, diante da aceleração do desmate na Amazônia e no Cerrado.

A aposta do governo brasileiro é que Biden só reforce a postura da União Europeia no nível do discurso. Mas isso não significa que o país não será impactado. Pelo contrário: as palavras também importam e devem empurrar o Brasil para um isolamento político ainda mais acentuado.

De acordo com diplomatas que negociam acordos ambientais, apontar o Brasil como vilão será uma estratégia de Biden para recuperar sua credibilidade internacional, colocada em xeque na agenda climática por antecessores republicanos: os ex-presidentes Trump, que abandonou o Acordo de Paris e George Bush, que se opôs ao acordo anterior, o Protocolo de Kyoto.

Diante da desconfiança sobre a oscilação do protagonismo americano no combate ao aquecimento global, líderes internacionais aguardam sinais de consolidação do comprometimento anunciado por Biden.

Para além do retorno imediato ao Acordo de Paris, anunciado logo antes da sua posse, os sinais políticos devem ser confirmados com políticas domésticas, como a regulação de incentivos a setores menos poluentes e ainda a aprovação de leis que assegurem uma trajetória de queda de emissões até 2030.

Enquanto não mostra sua lição de casa, poder apontar a postura do Brasil como pária internacional funcionará para Biden como um trunfo.

Além de derrubar a força política das posições brasileiras em negociações internacionais, negociadores de diversos países desejam também rever a regra dos sistemas de tomada de decisão da ONU que exigem consenso entre todos os países. Isso porque o Brasil conseguiu, a partir da sua postura isolada, bloquear avanços em negociações que contavam com a aprovação formal de todos os outros países.

Os bloqueios do Brasil levaram a uma frustração generalizada e também a uma expectativa de que a chegada de John Kerry, que foi secretário de Estado de Obama e será o enviado especial para o clima no governo Biden, possa influenciar a criação de um sistema de negociação que não fique refém de uma resistência isolada.

A força da articulação política de Kerry também aponta para a possibilidade de uma tríplice aliança entre Estados Unidos, União Europeia e China, que buscam protagonismo na agenda climática e também respondem pela maior parte das emissões globais de gases causadores do aquecimento global. São também os maiores importadores do Brasil.
O efeito de Bolsonaro para a agenda climática é hoje comparável ao de Trump, que, ao anunciar sua saída do Acordo de Paris, provocou a Europa a China a assumir o protagonismo da pauta, fortalecendo-a.

A postura negacionista e antiglobalista do Brasil agora fortalece os ‘inimigos’ aos quais o projeto de Bolsonaro declarou guerra. A pauta das mudanças climáticas nunca havia sido tão importante como é agora para as relações internacionais, para o comércio global e para um presidente americano.

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Sem Trump, mundo volta a encarar a verdade inconveniente do clima https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/2020/11/07/sem-trump-mundo-volta-a-encarar-a-verdade-inconveniente-do-clima/ https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/2020/11/07/sem-trump-mundo-volta-a-encarar-a-verdade-inconveniente-do-clima/#respond Sat, 07 Nov 2020 22:09:13 +0000 https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/09/WhatsApp-Image-2019-09-20-at-17.14.13-1-320x215.jpeg https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/?p=863 ANÁLISE – Líderes globais fizeram de tudo no âmbito político para compensar a saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris. No entanto, não puderam conter o contágio das posturas trumpistas em países-chave para o combate às mudanças climáticas, especialmente no Brasil.

Apoiados por condições tecnológicas e mercadológicas que sopram a favor da transição energética, líderes globais buscaram dar o recado de que o mundo seguiria a rota traçada por Paris e que, se os Estados Unidos de Trump não quisessem encarar o desafio, a China estaria pronta para assumir a posição de liderança global, assim como a Alemanha de Merkel e a França de Macron.

No entanto, a ausência americana não só enfraqueceu os esforços de cooperação e de financiamento das ações climáticas, como também deixou blocos de países conservadores na agenda do clima mais confortáveis para bloquear entendimentos e até para negar a ciência climática.

Em 2018, o relatório do IPCC (painel científico da ONU sobre clima) entregue à Conferência do Clima da ONU foi combatido por diplomatas de diversos países e quase deixou de ser citado entre os documentos assinados na conferência, após revelar verdades ainda mais inconvenientes: o mundo precisaria se esforçar de três a cinco vezes mais do que o combinado no Acordo de Paris para vencer as consequências mais desastrosas do clima.

Temos uma década para cortar as emissões de carbono pela metade, segundo o relatório que o IPCC levou para a conferência de 2018.

O prazo apertado, mas tecnicamente viável, pode desacelerar as mudanças climáticas em curso, evitando, por exemplo, que os países-ilha sumam do mapa e que o Nordeste brasileiro vire um deserto.

Naquela reunião, os Estados Unidos, país que mais emitiu carbono em toda a história, já eram representados por um governo negacionista da ciência climática, enquanto o Brasil, detentor da maior floresta tropical do mundo, acabava de eleger a versão tropical de Trump como presidente.

Sem poder contar com os Estados Unidos e com o Brasil, a conta para resolver o maior desafio que a humanidade já encarou ficava ainda mais cara e talvez impagável para o restante dos países.

Com a derrota de Trump nesta eleição, o mundo começa se ver livre do fenômeno do negacionismo no poder.

Mais importante do que a vitória de Biden é a derrota de Trump e, com ela, o aniquilamento da negação da ciência e de falsas dicotomias entre desenvolvimento e conservação ambiental ou entre o Acordo de Paris e a geração de empregos – a que Biden responde com o plano de revolução de energia limpa, criando empregos no setor de renováveis.

As inspirações políticas que o trumpismo impulsionou mundo afora também perdem força. E líderes que se sentiam à vontade para cruzar limites da civilidade voltam a se ver comprometidos com algum pragmatismo – minimamente, o das urnas.

No entanto, ainda não podemos dar como certo um efeito dominó da eleição americana sobre a política ambiental brasileira. É possível que Bolsonaro resista a mudar o tom e tente se aventurar por saídas impróprias ou até autoritárias.

As declarações de Biden se dispondo a levantar recursos para a conservação da Amazônia soam como as do presidente francês Emmanuel Macron e são vistas pelo bolsonarismo como um atentado à soberania do país, alimentando teorias da conspiração de que o mundo teria interesse na internacionalização da Amazônia.

Até aqui, o governo Bolsonaro não tem respondido pragmaticamente a sinais importantes de países importadores de commodities brasileiras, como a China e a União Europeia, nem mesmo de investidores estrangeiros que ameaçaram deixar de investir no país caso as taxas de desmatamento da Amazônia continuassem descontroladas.

Agora, a pressão da comunidade internacional pelo controle do desmatamento da Amazônia pode ter mais chances de fazer efeito, já que Bolsonaro deixa de contar com a esperança de alguma parceria salvadora com os Estados Unidos.

Vale lembrar que o bioma é fundamental para a regulação do clima global e o desmate descontrolado o aproxima do ponto de não-retorno, a partir de quando a floresta não consegue mais se regenerar e tende a virar savana.

A verdade da ciência climática não é tão inconveniente para o Brasil. O mundo está disposto a pagar pelos benefícios de um recurso valioso do Brasil e que, enquanto conservado, continua sendo nosso. Mas, para entender que a crise oferece oportunidades de lucros e de liderança ao Brasil, o país ainda precisará se livrar das fake news e conspirações alimentadas pelo nosso Trump tropical.

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Indicados de Salles caíram após episódios de defesa do Ibama e do ICMBio https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/2020/08/21/indicados-de-salles-cairam-apos-episodios-de-defesa-do-ibama-e-do-icmbio/ https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/2020/08/21/indicados-de-salles-cairam-apos-episodios-de-defesa-do-ibama-e-do-icmbio/#respond Fri, 21 Aug 2020 19:22:44 +0000 https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/10/15687288175d80e6f12e8fe_1568728817_3x2_lg-320x215.jpg https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/?p=772 ANÁLISE  – A demissão do presidente do ICMBio, coronel Homero Cerqueira, publicada nesta sexta-feira (21), é a terceira da série em que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, desiste de um nome escolhido por ele mesmo para um cargo de confiança.

Os três casos se justificam por um mesmo ‘escorregão’ imperdoável dos gestores que aceitaram trabalhar para um projeto político declaradamente antiambiental. Nos lapsos episódicos que marcaram suas demissões, eles ousaram defender a missão institucional dos órgãos que administravam contra as ideias do ministro de enfraquecimento e até mesmo de deslegitimação do trabalho do ICMBio e do Ibama.

À frente do ICMBio, órgão responsável pela gestão das unidades de conservação no país, Cerqueira não era considerado aliado dos servidores ou de seus pareceres técnicos. Pelo contrário, era visto com grandes desconfiança pelos servidores de carreira e assinou parte da ‘boiada’ conduzida por Salles no desmonte da gestão das unidades de conservação no país.

Mas o limite para a permanência de Cerqueira na presidência do ICMBio começou a ser sinalizada quando ele se posicionou contrariamente à reestruturação do ministério – já com o desgaste político na relação com Salles como pano de fundo para a demissão, como mostrou a reportagem da Folha.

Na decisão publicada na última semana, Salles criou uma Secretaria de Áreas Protegidas, com funções similares às que são hoje exercidas pelo ICMbio. Segundo fontes do ICMBio, Cerqueira se posicionou diante do ministro defendendo que aquela competência já era do órgão que ele administra.

Com isso, o coronel fez eco à nota publicada pela associação dos servidores de meio ambiente (Ascema), que havia levantado a mesma preocupação.

“Retirar as atribuições desse órgão e passá-las para uma secretaria específica do MMA significa uma concentração de poder e um futuro de incertezas”, dizia a nota.

Ao visitar o Pantanal nesta semana, Cerqueira roubou a cena e foi elogiado pela prontidão no envio de recursos às equipes do ICMBio em campo para combate às chamas, segundo fontes que acompanharam sua visita.

Salles, por outro lado, reuniu-se com fazendeiros e sinalizou concordância com suas demandas. Entre elas, estaria o uso de retardantes químicos que diminuem o fogo e permanecem no solo, atuando como fertilizantes. No entanto, a técnica causa outros desequilíbrios ecológicos e tem sua aplicação controlada pelos corpos técnicos do ICMBio e do Ibama.

Cerqueira, segundos fontes do governo, teria defendido a avaliação técnica junto ao ministro. Essa teria sido a última a gota d’água para sua exoneração.

No Ibama, outro nome trazido por Salles acabou se vendo em favor dos técnicos sob seu comando em um episódio que o ministro também não perdoaria.

Combatido pelos servidores pela falta de competência para o cargo e criticado por barrar demandas para  fiscalização, o então diretor de proteção ambiental do Ibama, major Olivaldi Azevedo, recusou-se a exonerar dois coordenadores de fiscalização do órgão que estavam em uma missão de combate a invasões em terras indígenas no Pará, no último abril.

Bem sucedida, a operação foi mostrada pelo Fantástico (TV Globo) e irritou o presidente Bolsonaro por exibir a destruição dos equipamentos usados nas atividades ilegais.

Como este blog havia antecipado na época, Azevedo caiu para que o próximo diretor cumprisse a ordem recusada por ele. Duas semanas depois sairia a exoneração dos coordenadores de fiscalização responsáveis por banir atividades de desmatamento na terra indígena Ituna-Itatá (PA), a mais desmatada do país no ano anterior.

Já o precursor das exonerações em cargos de confiança pediu demissão ainda em abril de 2019. Adalberto Eberhard foi o primeiro presidente do ICMBio na gestão de Salles.

A gota d’água no seu caso aconteceu quando Salles ameaçou abrir um processo administrativo contra servidores que não haviam comparecido a um evento com um público ruralista no interior do Rio Grande do Sul.

Sua saída do ICMBio abriu a porteira para a militarização de toda a diretoria do órgão, o que centralizou a gestão e diminuiu a transparência dos órgãos (servindo como um dos primeiros sinais de que as quedas nos comandos do governo Bolsonaro não sinalizam recuos na política de desmonte das estruturas de gestão).

Veterinário, Eberhard havia chegado ao cargo com alguma afeição aos equívocos conceituais do governo Bolsonaro. Para pavor dos técnicos sob seu comando, chamou áreas protegidas de propriedades rurais.

No entanto, também defendeu o ICMBio contra a ideia de fusão com o Ibama – que foi abandonada na época e voltou a ser aventada nos bastidores após a reestruturação do ministério.

Além de um alinhamento inicial com a proposta de trabalho, Adalberto Eberhard, Olivaldi Azevedo e, agora, Homero Cerqueira nutriam em comum a falta de competência para lidar com os desafios que seus cargos impunham.

Pode-se imaginar que a necessidade de consultar a área técnica para entender o novo ambiente trabalho pode tê-los levado, eventualmente, a entender a razoabilidade de pareceres embasados na ciência. Mas acolhê-los não estava na descrição da vaga.

Os cargos de confiança no Ministério do Meio Ambiente implicam em confiar cegamente nas apostas políticas do ministro – e fechar os olhos para o que quer que alertem os corpos técnicos.

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Salles errou previsão e teve decisões questionadas por imprensa, MPF e Justiça https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/2020/05/23/salles-errou-previsao-e-teve-decisoes-questionadas-por-imprensa-mpf-e-justica/ https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/2020/05/23/salles-errou-previsao-e-teve-decisoes-questionadas-por-imprensa-mpf-e-justica/#respond Sat, 23 May 2020 19:12:16 +0000 https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/07/D_CrauZX4AIwuAg-e1564996120237-320x215.jpg https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/?p=714 ANÁLISE – A estratégia revelada pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, durante a reunião ministerial ocorrida em 22 de abril, mostrou-se, ao longo de um mês, fracassada.

“Precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de Covid, e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”, disse Salles na reunião.

Diferente do que previra ao propor o despacho de medidas ‘em baciada’, Salles teve suas decisões questionadas pela imprensa, pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela Justiça durante a pandemia.

Um mês depois da reunião ministerial, no último dia 21 uma decisão da Justiça Federal passou a obrigar órgãos do Ministério do Meio Ambiente a fiscalizar os dez pontos mais críticos da Amazônia – ou seja, a cumprir uma missão institucional.

A decisão de tutela antecipada foi dada pela juíza federal Jaiza Maria Pinto Fraxe, da 7ª Vara Federal Ambiental e Agrária do Amazonas, a pedido da força-tarefa Amazônia do Ministério Público Federal, e impõe pena de multa diária ao governo por descumprimento da obrigação.

Entre os motivos citados pela juíza para a decisão, está o atrelamento da ação de desmatadores à transmissão do coronavírus a comunidades remotas na Amazônia.

Ao citar a pandemia causada pela Covid-19 na reunião ministerial, no entanto, Salles não expressou qualquer preocupação do seu ministério para a contenção da doença. Pelo contrário, enxergou o momento como oportunidade para desregulamentação da proteção ambiental.

Embora a franqueza do ministro possa ter chocado uma grande parte do público-geral, tal esperteza não foi novidade alguma para quem acompanha a condução do Ministério do Meio Ambiente.

O ministro chegou a reconhecer na reunião que sua então recente decisão de “simplificação da lei da mata atlântica” – na prática, a anistia a desmatadores – já estava sendo questionada nos jornais. “Então pra isso nós temos que tá com a artilharia da AGU preparada”, disse.

Embora Salles estivesse respaldado por parecer da AGU, o Ministério Público Federal questionou a decisão, pediu à Justiça a anulação da anistia e recomendou a órgãos estaduais de fiscalização ambiental que não seguisse a orientação do ministério.

Em São Paulo, o governador João Doria disse a ambientalistas reunidos em seu conselho que a decisão de Salles não valeria no estado, que continuaria seguindo a legislação específica para a mata atlântica.

“Agora tem um monte de coisa que é só parecer, caneta, parecer, caneta. Sem parecer também não tem caneta, porque dar uma canetada sem parecer é cana”, havia dito Salles na reunião.

Mesmo sob a emergência de uma pandemia, a realidade democrática mostra que não basta parecer.

Na última semana, um decreto transferiu do Meio Ambiente para a Agricultura a competência de formular estratégias e programas para a gestão de florestas públicas. No dia seguinte, o PSOL propôs ao Congresso sustar os efeitos da medida, cujas brechas dariam margem para a legalização da grilagem.

A tentativa de legalização da grilagem foi, aliás, a maior e mais barulhenta derrota ambiental do governo durante a pandemia.

A proposta rachou a bancada ruralista ao passo em que conseguiu a desaprovação dos mais diversos atores da sociedade, para muito além do ambientalismo.

O texto foi alvo de contestação de senadores, do Ministério Público Federal, de empresas globais, de parlamentares europeus e de artistas como Caetano Veloso, Bruno Gagliasso e até Anitta, que fez lives com deputados e mobilizou suas redes sociais contra o projeto.

A perseguição a servidores também não passou despercebida. Este blog antecipou que o governo poderia exonerar dois coordenadores de fiscalização do Ibama após uma operação exitosa contra garimpo na Amazônia exibida pelo Fantástico.

As exonerações, publicadas no Diário Oficial na semana seguinte, não deixam margem para outra justificativa que não a retaliação, alertada em nota da Associação dos Servidores de Meio Ambiente (Ascema). O MPF, através de inquérito civil, investiga as circunstâncias das exonerações.

“O general Mourão tem feito aí os trabalhos preparatórios para que a gente possa entrar nesse assunto da Amazônia um pouco mais calçado”, havia dito Salles durante a reunião.

Não passou batido, no entanto, o nível superficial do calçamento, que subordinou o Ibama às Forças Armadas e resultou em uma operação ‘para inglês ver’, como a Folha revelou na reportagem “Exército ignora Ibama, mobiliza 97 agentes e faz vistoria sem punição“.

Salles também aproveitou a pandemia para fazer uma reforma administrativa no ICMBio, órgão responsável pela gestão das unidades de conservação no país.

A mudança exonerou gestores especializados e centralizou a administração das unidades de conservação através de cargos ocupados por militares. Como resultado imediato, o órgão obteve uma recomendação do MPF para que anulasse as exonerações. Um inquérito civil público investiga os prejuízos da medida para a conservação do mico-leão-dourado.

“Tudo que a gente faz é pau no Judiciário, no dia seguinte”, havia dito Salles na reunião de 22 de abril. Acertou na leitura. Errou ao esperar ser aliviado pela pandemia.

Talvez Salles tivesse mais sucesso na sua empreitada de desmonte das políticas ambientais se o Brasil ainda não tivesse conhecimento das suas intenções, que lhe renderam apelidos como “antiministro” e “ministro da destruição do meio ambiente” ao longo do ano passado, entre uma sequência de crises ambientais ora desdenhadas, ora mal administradas.

Apesar dos justificáveis pedidos de impeachment de Salles, que de forma flagrante trabalha contra os interesses da pasta que comanda, uma eventual troca do ministro não deve acompanhar mudança no projeto, desenhado ainda durante a campanha eleitoral de Bolsonaro.

Salles é competente na busca de cumprir o projeto do seu chefe. O que o atrapalha é que vivemos em uma democracia.

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A pandemia parou uma ameaça ao planeta: nossa correria https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/2020/03/22/a-pandemia-parou-uma-ameaca-ao-planeta-nossa-correria/ https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/2020/03/22/a-pandemia-parou-uma-ameaca-ao-planeta-nossa-correria/#respond Sun, 22 Mar 2020 21:44:20 +0000 https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/Pocoyo.jpg https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/?p=631 ANÁLISE  – Correndo para onde? É como se o coronavírus nos perguntasse enquanto nos freava.

O ritmo acelerado no mundo todo esteve distante de se dedicar ao acesso a demandas essenciais, relembradas agora pela pandemia. Por outro lado, ele vinha, a todo vapor, ameaçando a capacidade de regeneração da natureza.

Os ciclos naturais têm seu próprio ritmo. Por isso, há milênios a humanidade criou o conceito de tempo justamente para mediar nossa relação com o mundo natural, o que permitiu a compreensão das estações do ano, das épocas de secas e cheias e, logo, o desenvolvimento primordial da agricultura, um dos berços das civilizações.

No entanto, o desenvolvimento científico e econômico foi deslocando nossa consciência para fora da ideia de pertencimento à natureza – esse contexto inexorável que nos cerca e condiciona nossa vida. Concedemos a nós mesmos uma licença para criar nosso próprio conceito de tempo. E inventamos que ‘tempo é dinheiro’.

Com uma tecnologia cada vez mais veloz e que faz ações valorizarem ou despencarem em microssegundos, a economia financeira passou a ditar o ritmo do mundo, impondo a todos uma pressa generalizada. É preciso fazer tudo logo, realizar mais em tempos recordes, produzir, consumir e descartar cada vez mais rápido – como se isso significasse tirar o melhor proveito da vida.

Nessa correria, o sentido da produtividade tem passado longe de atender às necessidades básicas da vida, que poderiam gerar empregos para demandas fundamentais – como universalizar o acesso ao saneamento básico, transitar para uma economia de baixo carbono, regenerar áreas degradadas, implementar a reciclagem e a logística reversa, ampliar o acesso à saúde, à educação e à segurança pública ou construir moradias dignas.

No modelo de desenvolvimento pré-pandemia, a aceleração da roda econômica pressionava a demanda por recursos naturais sem necessariamente melhorar a qualidade de vida de ninguém.

Enquanto hoje damos atenção a essas questões básicas porque a pandemia nos obriga a repensar prioridades, a preocupação dominante logo antes desta crise era manter a roda da economia girando. ‘Para onde’ não chegava a ser uma questão.

E foi de carona na roda da economia globalizada e girando velozmente que o coronavírus deu a volta ao mundo em tempo recorde. Entre dezembro e março, o vírus chegou a quase todos os continentes, com exceção da Antártica.

Sem dar tempo para a criação de vacina ou remédio, o vírus correu com o mundo a tempo de conseguir pará-lo.

Enquanto se tomam medidas emergenciais para contenção do vírus, ele também nos obriga a uma revisão de valores da sociedade global, para a qual a relevância dos papeis da ciência e do Estado se evidenciam desde já.

Mas há ainda uma revisão mais estrutural que precisa ser encarada para superarmos a crise do coronavírus com resiliência: pensar o desenvolvimento sustentável também como uma gestão do tempo.

As definições mais comuns de sustentabilidade a tratam como um desafio sobre o uso do espaço, focando nos conflitos por território, os cálculos sobre áreas que precisam ser preservadas ou até mesmo a ‘gestão de estoque de recursos naturais’, como economistas gostam de resumir.

Essa visão também costuma ensinar que os ‘recursos naturais são limitados’. Na verdade, eles se renovam, mas no seu próprio tempo. E no tempo acelerado com que produzimos, consumimos e descartamos, não há reciclagem ou economia circular que dê conta de repor os recursos naturais.

Continuamos pressionando a demanda por matéria-prima e avançando sobre áreas naturais que, mais do que estoques, funcionam como matrizes de recursos e também de serviços ambientais – provendo chuvas, regulação do clima, fertilidade do solo, filtração do ar e da água.

Adaptar o ritmo da economia ao tempo de regeneração dos recursos naturais é, portanto, uma chave para uma economia sustentável.

Um exemplo de fácil visualização é a bioeconomia praticada na extração de castanha-do-pará e açaí na Amazônia. Os alimentos são exportados para o mundo e, a despeito do sucesso de público, não estão submetidos à demanda do consumo, mas às épocas de colheita determinadas pela castanheira e pelo açaizeiro.

O modelo econômico que permitiu esta pandemia também está na raiz da crise climática e da perda de biodiversidade, que por sua vez agravam a exposição a epidemias, por conta da desregulação climática e da fragilização dos ecossistemas, de acordo com os prognósticos científicos para as próximas décadas.

A exploração econômica acelerada não permite o tempo – pelo menos sete anos – para que áreas degradadas se regenerem e voltem a acolher diversas espécies.

Já os motores de fontes fósseis da economia mundial emitem carbono a uma velocidade muito superior à que as árvores conseguem absorver gás carbônico no seu processo de fotossíntese.

Portanto, a aparente boa notícia de que as emissões de gases-estufa estão caindo durante a pandemia pode não significar nada se sairmos dessa crise repetindo o pensamento que nos trouxe até aqui.

O freio provocado pela pandemia é mais cuidadoso do que a aceleração na direção do abismo, previsto pelos climatologistas. Para superarmos a crise do coronavírus com resiliência, é preciso manobrar e repensar o sentido da produtividade, para aí reencontrarmos a direção e o passo.

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Alta histórica no desmatamento da Amazônia aponta beco sem saída https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/2019/11/18/alta-historica-no-desmatamento-da-amazonia-aponta-beco-sem-saida/ https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/2019/11/18/alta-historica-no-desmatamento-da-amazonia-aponta-beco-sem-saida/#respond Mon, 18 Nov 2019 21:52:48 +0000 https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/09/Folhapress-320x215.jpg https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/?p=480 Há 22 anos a taxa de desmatamento da Amazônia não sofria uma subida tão grande de um ano para o outro. A alta de 29% confirmada hoje pelo Inpe só é comparável ao salto de 24% na taxa de desmatamento de 1997 para 1998.

O retorno aos anos 90 coloca em xeque, ao longo desta próxima década, a sobrevivência da Amazônia como floresta tropical e seu papel fundamental na regulação do clima global.

De acordo com estudos sobre a savanização da Amazônia, a floresta, que produz chuvas e estoca carbono, perde suas capacidades se o desmatamento superar a casa dos 20% a 25% do território do bioma, que já tem pelo menos 17% da sua área total desmatada.

Muito antes, no curtíssimo prazo, a diplomacia brasileira chega de cabeça baixa na COP-25 do Clima, daqui duas semanas, quando terá mais dificuldade para negociar sua proposta de regulamentação do mercado de carbono.

Já o Fundo Amazônia, baseado em pagamentos por resultado, não deve contar com novos aportes. O mecanismo remunera o país de forma proporcional à redução no desmatamento.

O governo pode substituir sua preocupação com a gestão do fundo pela gestão do orçamento do Ministério do Meio Ambiente, que ficará desfalcado e terá com isso mais dificuldade para combater o desmatamento.

Aqui, o ciclo virtuoso das doações internacionais – que o país demandou nos fóruns internacionais – inverte-se em uma perigosa direção viciosa, apontando para o descontrole das políticas ambientais.

O agronegócio brasileiro ainda deve enfrentar nova onda de resistência na exportação de produtos ligados ao desmatamento da Amazônia – madeira, soja, carne e, mais recentemente, cana-de-açúcar, que já chega ao bioma com a imagem abalada – especialmente para países europeus.

Os cultivos do Centro-Sul também devem se preocupar com um futuro próximo: a soma de mudanças climáticas com desmatamento da Amazônia ameaça a abundância e, ainda mais importante, a regularidade das chuvas enviadas do Norte para boa parte do país.

Entretanto, os anos 90 guardam grandes diferenças com a atualidade, impedindo um retorno completo no tempo. Naquela década, as áreas desmatadas anualmente ficavam em média perto dos 20.000 km².

Em 1995, a maior alta registrada bateu os 29.000 km² de desmatamento e recebeu respostas mais duras do governo, que, no ano seguinte, determinaria por medida provisória o aumento da áreas de Reserva Legal de 50% para 80% das propriedades na Amazônia.

De lá para cá, os intervalos entre os picos e as reduções do desmatamento são marcados por esforços do governo como a moratória da soja – alvo de lobby no governo atual para que seja extinta.

Assinada em 2008, a moratória é um pacto com o setor produtivo da soja para evitar o desmatamento na Amazônia.

Desde 2009, a área desmatada no bioma tem ficado abaixo dos 10.000 km² – chegando ao recorde mais baixo de 4.500 km² em 2012. O período marcou um descolamento entre crescimento econômico e desmatamento, com aumento do PIB agrícola concomitante à redução do desmate.

Hoje, a confirmação da alta de 29% somada à ausência de medidas que sinalizem efetividade no combate ao desmatamento para o próximo ano apagam perspectivas de desenvolvimento dos potenciais econômico, diplomático e ambiental do país, que depende de forma central do governo federal para a execução das políticas de controle do desmatamento, mas até o momento só contou com decisões da gestão Bolsonaro que fragilizaram o controle ambiental.

Portanto, é preciso contar com uma sinalização clara e concreta do governo na direção oposta à tendência que se apresenta hoje, com políticas de combate à ilegalidade na Amazônia e reforço da fiscalização. A essa altura, não restam caminhos criativos, atalhos matemáticos ou desvios retóricos. É preciso encarar os fatos para escapar do beco sem saída.

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Ministro sabe por que fontes do Ibama são preservadas em reportagem https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/2019/11/01/ministro-sabe-por-que-fontes-do-ibama-sao-preservadas-em-reportagem/ https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/2019/11/01/ministro-sabe-por-que-fontes-do-ibama-sao-preservadas-em-reportagem/#respond Fri, 01 Nov 2019 23:19:20 +0000 https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/11/salles-panico-320x215.jpg https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/?p=462 OPINIÃO – O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, conhece o motivo pelo qual as fontes são preservadas na reportagem ‘Governo não convocou técnicos especialistas em óleo do Ibama‘.

A matéria revelou que o setor de licenciamento ambiental de óleo e gás, apesar da experiência em planos de emergência contra vazamento de óleo, não foi acionado pelo Ministério do Meio Ambiente.

Em vez de responder aos fatos revelados pela Folha, o ministro escolheu colocar o conteúdo sob suspeita. “Essas versões são sempre o jornalista que escreve. Quando eles apresentarem a fonte a gente pode contestar”, disse Salles em entrevista à rádio Jovem Pan, que citou a matéria para questioná-lo nesta sexta-feira (1).

Ao levantar dúvida sobre a veracidade da informação – facilmente averiguável pelo comandante da pasta – o ministro não só se esquiva de prestar contas, como também dissimula o motivo da preservação das fontes na reportagem.

A pasta comandada por Salles havia proibido ainda em março a comunicação do Ibama e do ICMBio e centralizado no ministério os pedidos de informação da imprensa.

A emergência por conta do óleo nas praias do Nordeste não motivou uma exceção à lei da mordaça. Pelo contrário, o ministério reforçou internamente a validade da medida, após técnicos que atuavam na contenção do óleo e a assessoria de imprensa do Ibama terem feito comunicações diretas com a imprensa e a população local no início das operações de resposta, dando orientações sobre como lidar com a emergência.

A pasta ignora as sucessivas notas da Asibama, a associação de servidores do Ibama, que apontam a necessidade de comunicação direta com a população sobre a emergência.

“Em qualquer incidente de grandes proporções é imprescindível o estabelecimento de efetivos canais de comunicação e a divulgação sistemática de informações atualizadas sobre o evento”, diz nota da Asibama-RJ publicada nesta quinta (31).

Além de atrapalhar a comunicação da emergência, a lei da mordaça imposta pela gestão de Salles também reforça o clima de perseguição a servidores da pasta – com diversos exemplos ao longo do ano, lembrados ao fim deste texto.

Neste contexto, sugerir a apresentação de fontes como condição para sua resposta pode soar como ameaça aos servidores que se prestam a revelar informação de interesse público. Por outro lado, está na mão do ministro garantir a liberdade das fontes do seu ministério, garantindo uma ambiência democrática.

Ricardo Salles exonera 21 dos 27 superintendentes regionais do Ibama

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Presidente do ICMBio pede demissão após ameaça de Salles de investigar agentes

Justiça impede transferência de especialista em golfinhos de Noronha para sertão

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Insustentável: ministro do Ambiente quis ‘causar’, mas ficou querendo https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/2019/05/19/insustentavel-ministro-do-ambiente-quis-causar-mas-ficou-querendo/ https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/2019/05/19/insustentavel-ministro-do-ambiente-quis-causar-mas-ficou-querendo/#respond Sun, 19 May 2019 22:13:51 +0000 https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/01/WhatsApp-Image-2019-01-15-at-19.57.55-150x150.jpeg http://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/?p=279 Justamente quando o governo Bolsonaro enfrenta crise aguda – com o impeachment voltando à boca do povo – o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, escolhe criar novas polêmicas para fugir das anteriores. Nas últimas semanas, ele aumentou a coleção de desgastes e deu sua colaboração para o clima de instabilidade política no país.

Só nesta semana, as decisões intempestivas de Salles pegaram de surpresa e criaram atritos com a Alemanha, a Noruega, a CGU, o BNDES, a agência de mudanças climáticas da ONU e o prefeito de Salvador – ninguém menos que ACM Neto, presidente do partido que controla a Câmara e o Senado.

Entenda a cronologia dos fatos. No início do mês, o ministro já havia cancelado uma viagem à Europa, conforme este blog revelou, após a publicação de uma carta de cientistas europeus ter cobrado compromissos ambientais do Brasil.

Há menos de duas semanas, a forte repercussão internacional da reunião dos ex-ministros do Meio Ambiente em mídias como Guardian, Reuters e Washington Post fez com que a mesma crítica voltasse até Salles. Segundo pessoas próximas do governo, ele teria sido cobrado por Tereza Cristina, ministra da Agricultura, que por sua vez teria ouvido reclamações da União Europeia.

Com respostas que minimizam e tentam desqualificar as críticas, o ministro apostou na sua eloquência e decidiu se lançar em nova polêmica. Através da coluna de Sonia Racy, do Estadão, anunciou na última quinta-feira (16) que o ministério e a CGU teriam encontrado irregularidades no Fundo Amazônia.

Três horas depois da notícia publicada, o órgão enviou nota à Folha esclarecendo que “a CGU não efetuou testes de auditoria sobre esses contratos ou avaliou os resultados que serão apresentados. As conclusões são de exclusiva responsabilidade do MMA”.

No dia seguinte (17), o ministro tentou sustentar uma coletiva de imprensa em São Paulo apenas com declarações – sem revelar dados da apuração, que só teria sido feita em
25% dos contratos do fundo.

Ainda no mesmo dia, as embaixadas da Noruega e da Alemanha, países doadores do Fundo Amazônia, manifestaram-se dizendo que estão satisfeitas com o uso dos recursos.
O BNDES, que gere os recursos do fundo, também publicou uma defesa do mecanismo, que “reflete uma experiência de cooperação internacional inovadora e amplamente reconhecida”, segundo a nota.

No sábado (18), pelo Twitter, o ministro aliviou o tom de denúncia dizendo que vai fazer um amplo debate sobre o Fundo Amazônia e que “se estiver tudo ok, ótimo”.

É de se imaginar que a mesma frase tenha sido ouvida pelo prefeito de Salvador, ACM Neto. No início da semana, ele não gostou nada de ver o ministério cancelar, de surpresa, o evento da ONU sobre mudanças climáticas previsto para acontecer em Salvador, em agosto.

Presidente nacional do DEM, partido que preside a Câmara e o Senado, ACM insistiu e informou à ONU que ainda pretendia sediar o evento. Salles teve que ceder.

“O consenso internacional quer? Vai ficar querendo”, o ministro havia dito à Folha em janeiro, em crítica aos processos da ONU. O que a experiência no governo tem mostrado, no entanto, é que o plano internacional não é tão desprendido dos interesses nacionais e, inclusive, envia recados ao ministério da Agricultura, patrocina ações de controle ambiental através do Fundo Amazônia e interessa até a governos locais, que querem sediar grandes eventos.

A aposta em isolar as críticas perde efeito à medida que as respostas passam a chegar de todos os lados. Longe de serem ongueiras ou comunistas, as instituições que responderam a Salles ao longo da semana apenas lembram ao ministro que governar exige articulação. O estilo que tem agradado ao presidente, até Bolsonaro já deve saber, é insustentável.

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