Indiciamento de brigadistas se baseia em depoentes ligados a militares e ruralistas
A conclusão do inquérito da Polícia Civil do Pará que acusa brigadistas voluntários de terem causado incêndios em Alter do Chão foi feita a partir de depoimentos de pessoas ligadas a militares da reserva e a proprietários rurais da região.
Entre os depoentes estão dois caseiros de proprietários rurais das regiões incendiadas e quatro pessoas que declaram vínculo com a Associação de Reservistas de Santarém (Ares), de onde teria partido a suspeita contra os brigadistas, segundo os depoimentos.
O blog teve acesso ao relatório final do inquérito, que não apresenta provas. Os depoentes não são testemunhas oculares do crime investigado, mas relatam suspeitas, como o fato de os brigadistas identificarem os focos de incêndio de forma antecipada em relação a outras instituições e grupos de voluntários que estavam no local.
Dois depoentes contam terem sentido odor de gasolina no contato com brigadistas. Também se repetem entre os depoimentos os relatos de que eles teriam uma preocupação excessiva em registrar as ações com fotos e vídeos.
Quem acusa os brigadistas
“O declarante e membros da Ares comentaram ‘será que não foram esses caras que botaram fogo?’, em razão de que não viam os brigadistas com drones e esses pareciam sempre saber onde estavam os focos de incêndio”.
O trecho é do depoimento de Jean Carlos Leitão, que se identifica aos policiais como servidor público municipal e reservista membro da Ares.
No entanto, ele também é presidente do Instituto Cidadão Pró Estado do Tapajós (ICPET), que busca criar um estado independente do Pará. O instituto tem como assessor parlamentar um inimigo famoso de ONGs ambientalistas e comunidades indígenas, Edward Luz. Conhecido como “antropólogo dos ruralistas”, ele é contratado por proprietários rurais para produzir laudos contrários ao reconhecimento de terras indígenas.
Uma convocação para uma mobilização do ICPET foi feita por vídeo em uma página do Facebook chamada ‘Fora ONGs de Santarém’. O vídeo é gravado com Coronel Tomaso, militar da reserva que anunciou, em agosto, sua pré-candidatura à prefeitura de Santarém.
Na semana passada, após viagem a Brasília, Tomaso se tornou presidente municipal do partido Patriota, que negocia com Bolsonaro o aluguel da legenda para as eleições do ano que vem.
Checagem e erro
A maior parte dos depoimentos não conta com verificações básicas para confirmação das suspeitas, como cruzamentos com outras versões e com outros tipos de evidências.
Em um dos poucos exemplos do relatório em que há cruzamento de evidências, o blog verificou um erro na conclusão policial. O documento usa dados extraídos do celular do brigadista Marcelo Cwerner para apontar que ele esteve no local do incêndio no dia 14 de setembro, às 13h07.
“Portando (sic), não resta dúvida de que o indiciado MARCELO estava no local da ocorrência incendiária antes mesmo de ter dado início, conforme corroborado no depoimento da testemunha JOEL SILVA”, diz o relatório policial.
No entanto, o depoimento de Joel Silva conta ter visto Marcelo naquela região em outra data, 16 de setembro, para a qual não é apresentada uma confirmação com dados de localização.
Joel Silva declara à polícia ser caseiro em uma propriedade rural cujo dono seria Artur – seu sobrenome não consta no depoimento. Ele diz ter suspeitado dos brigadistas pelo fato de não ter avistado fogo antes da chegada deles na região.
Na íntegra do depoimento, o caseiro diz, adiante, que não poderia ter avistado o fogo desde o local onde estava anteriormente. Ele também declara que o foco de incêndio estava em um caminho na estrada que divide o terreno com seu vizinho. Essas informações, no entanto, não constam no relatório final.
Suspeitos descartados
Uma conversa entre os brigadistas e um proprietário rural que se identifica como Jean levanta suspeita para atuação de grileiros na região. O arquivo estava gravado em um dos celulares apreendidos pela polícia, mas não foi citado nas duas fases do inquérito acessadas pelo blog, nem no relatório final.
O blog teve acesso ao áudio. Nele, o proprietário rural acusa uma vizinha, Neca, de intimidação. Ela estaria tentando expandir seu terreno “para chegar até a praia”.
“O negócio é o seguinte: tem um helicóptero esperando a gente dar o comando para jogar água aqui”, diz um brigadista. O proprietário o interrompe dizendo “aqui já apagou”. Ele insiste: “é, mas muito passou, a gente estava aí mais cedo, de manhã, muito passou para o matinho do meio, da estrada”.
“Vocês estão combatendo, né? Ali embaixo tem mais dois também”, diz Jean. Ele ainda aponta seus funcionários, indica os limites da sua propriedade e diz que a propriedade ao lado é de Artur.
Os nomes de Neca, Jean e Artur não são considerados na investigação acessada pelo blog.
Um dia após a prisão preventiva dos brigadistas, o Ministério Público Federal havia publicado uma nota comunicando que a investigação federal apontava grileiros, e não brigadistas, como suspeitos do incêndio.
A última parte do relatório final, de 99 páginas, dedica-se a explicar o descarte de outros suspeitos.
A eventual ação de grileiros “não foi descartada pela investigação”, diz o relatório da Polícia Civil. “Inclusive chegando a ser objeto de interceptação telefônica com autorização judicial, sem que houvesse qualquer conotação relevante para a investigação”, continua o documento, sem apontar detalhes dessa linha investigativa.
O documento também diz que a possibilidade de “incêndios culposos em virtude de limpezas de terrenos que teriam fugido ao controle” foi descartada a partir de “entrevistas com moradores tradicionais, pois todos são orientados a evitarem este tipo de ação, principalmente nesta época do ano”, diz o documento.
“No entanto, a linha investigatória que mais se robusteceu, com as coletas de informações de testemunhas, se relacionou à ação antrópica criminosa por parte de alguns membros da Brigada de Incêndio de Alter do Chão”, conclui o texto policial.
Novo indiciado
Além dos quatro brigadistas que chegaram a ser presos por dois dias (Daniel Govino, João Victor Romano, Marcelo Cwerner e Gustavo Fernandes), o final do relatório indicia também um quinto brigadista voluntário, Ronnis Repolho Blair ‘Cebola’ (sic).
Ele é citado entre os indiciados apenas ao final do documento. Cebola e Grilo (Rafael Francisco de Oliveira Lobato Campos) teriam sido vistos por testemunhas nas áreas incendiadas. Os dois declararam à polícia terem feito o curso de formação de brigadistas e atuado como voluntários.
Mesmo rumo
A troca do delegado responsável pelo caso não mudou o curso da investigação. Ao inquérito anterior, baseado em grampos telefônicos, foram adicionados os depoimentos e também mensagens de Whatsapp dos celulares dos brigadistas, apreendidos pela polícia.
Outros materiais apreendidos, como os vídeos e fotos das operações, não são citados no relatório final do inquérito. Os documentos apreendidos na ONG Saúde e Alegria são citados como suspeitos de irregularidade na prestação de contas, mas não há conclusões.
“Em conclusão, temos que há necessidade de realização de perícia técnica, contábil e financeira, para determinar a existência ou não de irregularidades nas prestações de contas”, diz o relatório final.
Em algumas páginas do inquérito, a troca de comando não alterou sequer o cabeçalho dos documentos assinados pelo novo delegado responsável pelo caso, Waldir Freire Cardoso.
A assinatura dele, que comanda a Divisão Especializada em Meio Ambiente (DEMA), consta em páginas com cabeçalho da Delegacia de Conflitos Agrários (DECA). Ligado ao delegado afastado, o escrivão Alex Albério Maciel Soares também foi mantido no caso.
O relatório final cita as críticas feitas pela Comissão do Conselho Nacional de Direitos Humanos e pelo Ministério Público Federal e as rebate com argumentos que buscam reafirmar as decisões tomadas ao longo da investigação, sem indicação de revisão.
Embora a ONG WWF e também Leonardo DiCaprio tenham negado a existência de doações provenientes do ator, o relatório final do inquérito reafirma essa ligação, dizendo que um áudio do brigadista João – não transcrito no documento – confirmaria a informação.
Em sua conclusão, o relatório afirma tratar de provas “produzidas pelos próprios autores do fato, quando se movimentam, quando se comunicam, quando surgem intempestivamente em locais onde não ocorria incêndio e após subtamente rompía-se (sic) em labaredas a vegetação, em distintos pontos sem qualquer ligação para a disseminação natural do fogo”.