A pandemia parou uma ameaça ao planeta: nossa correria

ANÁLISE  – Correndo para onde? É como se o coronavírus nos perguntasse enquanto nos freava.

O ritmo acelerado no mundo todo esteve distante de se dedicar ao acesso a demandas essenciais, relembradas agora pela pandemia. Por outro lado, ele vinha, a todo vapor, ameaçando a capacidade de regeneração da natureza.

Os ciclos naturais têm seu próprio ritmo. Por isso, há milênios a humanidade criou o conceito de tempo justamente para mediar nossa relação com o mundo natural, o que permitiu a compreensão das estações do ano, das épocas de secas e cheias e, logo, o desenvolvimento primordial da agricultura, um dos berços das civilizações.

No entanto, o desenvolvimento científico e econômico foi deslocando nossa consciência para fora da ideia de pertencimento à natureza – esse contexto inexorável que nos cerca e condiciona nossa vida. Concedemos a nós mesmos uma licença para criar nosso próprio conceito de tempo. E inventamos que ‘tempo é dinheiro’.

Com uma tecnologia cada vez mais veloz e que faz ações valorizarem ou despencarem em microssegundos, a economia financeira passou a ditar o ritmo do mundo, impondo a todos uma pressa generalizada. É preciso fazer tudo logo, realizar mais em tempos recordes, produzir, consumir e descartar cada vez mais rápido – como se isso significasse tirar o melhor proveito da vida.

Nessa correria, o sentido da produtividade tem passado longe de atender às necessidades básicas da vida, que poderiam gerar empregos para demandas fundamentais – como universalizar o acesso ao saneamento básico, transitar para uma economia de baixo carbono, regenerar áreas degradadas, implementar a reciclagem e a logística reversa, ampliar o acesso à saúde, à educação e à segurança pública ou construir moradias dignas.

No modelo de desenvolvimento pré-pandemia, a aceleração da roda econômica pressionava a demanda por recursos naturais sem necessariamente melhorar a qualidade de vida de ninguém.

Enquanto hoje damos atenção a essas questões básicas porque a pandemia nos obriga a repensar prioridades, a preocupação dominante logo antes desta crise era manter a roda da economia girando. ‘Para onde’ não chegava a ser uma questão.

E foi de carona na roda da economia globalizada e girando velozmente que o coronavírus deu a volta ao mundo em tempo recorde. Entre dezembro e março, o vírus chegou a quase todos os continentes, com exceção da Antártica.

Sem dar tempo para a criação de vacina ou remédio, o vírus correu com o mundo a tempo de conseguir pará-lo.

Enquanto se tomam medidas emergenciais para contenção do vírus, ele também nos obriga a uma revisão de valores da sociedade global, para a qual a relevância dos papeis da ciência e do Estado se evidenciam desde já.

Mas há ainda uma revisão mais estrutural que precisa ser encarada para superarmos a crise do coronavírus com resiliência: pensar o desenvolvimento sustentável também como uma gestão do tempo.

As definições mais comuns de sustentabilidade a tratam como um desafio sobre o uso do espaço, focando nos conflitos por território, os cálculos sobre áreas que precisam ser preservadas ou até mesmo a ‘gestão de estoque de recursos naturais’, como economistas gostam de resumir.

Essa visão também costuma ensinar que os ‘recursos naturais são limitados’. Na verdade, eles se renovam, mas no seu próprio tempo. E no tempo acelerado com que produzimos, consumimos e descartamos, não há reciclagem ou economia circular que dê conta de repor os recursos naturais.

Continuamos pressionando a demanda por matéria-prima e avançando sobre áreas naturais que, mais do que estoques, funcionam como matrizes de recursos e também de serviços ambientais – provendo chuvas, regulação do clima, fertilidade do solo, filtração do ar e da água.

Adaptar o ritmo da economia ao tempo de regeneração dos recursos naturais é, portanto, uma chave para uma economia sustentável.

Um exemplo de fácil visualização é a bioeconomia praticada na extração de castanha-do-pará e açaí na Amazônia. Os alimentos são exportados para o mundo e, a despeito do sucesso de público, não estão submetidos à demanda do consumo, mas às épocas de colheita determinadas pela castanheira e pelo açaizeiro.

O modelo econômico que permitiu esta pandemia também está na raiz da crise climática e da perda de biodiversidade, que por sua vez agravam a exposição a epidemias, por conta da desregulação climática e da fragilização dos ecossistemas, de acordo com os prognósticos científicos para as próximas décadas.

A exploração econômica acelerada não permite o tempo – pelo menos sete anos – para que áreas degradadas se regenerem e voltem a acolher diversas espécies.

Já os motores de fontes fósseis da economia mundial emitem carbono a uma velocidade muito superior à que as árvores conseguem absorver gás carbônico no seu processo de fotossíntese.

Portanto, a aparente boa notícia de que as emissões de gases-estufa estão caindo durante a pandemia pode não significar nada se sairmos dessa crise repetindo o pensamento que nos trouxe até aqui.

O freio provocado pela pandemia é mais cuidadoso do que a aceleração na direção do abismo, previsto pelos climatologistas. Para superarmos a crise do coronavírus com resiliência, é preciso manobrar e repensar o sentido da produtividade, para aí reencontrarmos a direção e o passo.