Interior da Amazônia está vulnerável à Covid-19, afirmam pesquisadores
Apesar da baixa densidade demográfica e das longas distâncias entre as comunidades mais remotas do interior da Amazônia, pesquisadores estão preocupados com a falta de preparo da região para responder à pandemia do coronavírus.
Em artigo enviado com exclusividade ao blog, os cientistas mapeiam os desafios da Amazônia para lidar com a pandemia e fazem um alerta: a distância que impede comunidades remotas de acessar o sistema de saúde não as protege da ação de invasores.
“Os vetores de degradação da floresta são os mesmos que têm favorecido a disseminação silenciosa do vírus”, diz o texto, subscrito pela Coalizão Ciência e Sociedade e de autoria conjunta de Joice Ferreira (Embrapa Amazônia Oriental), Erika Berenguer (Universidades de Oxford e Lancaster), Ima Vieira (Museu Emílio Goeldi), Mercedes Bustamante (Universidade de Brasília) e Thiago Medaglia (MIT).
Confira abaixo a íntegra do artigo.
A vulnerabilidade das populações do interior da Amazônia à Covid-19
Há motivos de sobra para preocupar-se com a Covid-19 no Brasil, mas a sua rápida escalada na região amazônica merece atenção especial. Diferenças regionais e singularidades da dinâmica social a colocam em situação particular de vulnerabilidade.
Não por acaso, o primeiro colapso do sistema de saúde no Brasil ocorreu justamente em Manaus, a maior e mais afluente cidade da Amazônia. No mesmo dia em que, no Distrito Federal, o ministro da Saúde, Nelson Teich, declarava que “o Brasil é um dos países que melhor tem performado em relação à Covid”, as imagens de valas comuns abertas em Manaus para acomodar as vítimas fatais da pandemia rodavam o mundo.
O colapso precoce em comparação às demais capitais brasileiras, configurado pelo déficit de leitos e respiradores disponíveis à população manauara, não é mera coincidência e, tudo indica, poderá em breve ser acompanhado de situação semelhante em Belém (PA) e Macapá (AP).
A verdade é que o Sars-Cov-2, o vírus que causa a Covid-19, encontra na Região Norte os piores índices de infraestrutura hospitalar e serviços médicos do país. O efeito imediato: a região já ultrapassou qualquer outra no Brasil em número de casos confirmados da doença por milhão de habitante.
Mas, para além do acesso precário à saúde, a capacidade de prevenção e de recuperação da população local à pandemia é preocupante. Todos os indicadores socioeconômicos regionais do Brasil apresentam seus valores mais baixos na Amazônia, onde 48% da população vivia com até meio salário mínimo per capita em 2017 e 82% da população tem restrição a serviços de saneamento básico. A dependência do conturbado governo federal é, portanto, maior do que em outras regiões com melhor capacidade de resposta.
A gravidade de pobreza das famílias amazônicas, aliada a aspectos culturais, pode favorecer a propagação da Covid-19 nas comunidades interioranas. Ainda que a região amazônica como um todo não seja densamente povoada – hoje há cerca de 20 milhões de habitantes – não é incomum que vilas e povoados tenham densidade populacional alta. Nestes locais, também é usual encontrar famílias constituídas por membros de diversas gerações compartilhando casas precárias com um ou dois cômodos.
Estes agrupamentos são baseados em interações sociais intensas e centrais à vida comunitária, muitos com ligação forte com os centros urbanos mais próximos, o que demanda deslocamentos relativamente rotineiros até cidades e aglomerações, às vezes em embarcações lotadas e enfrentando extensas filas, não apenas para acesso à saúde e medicamentos, mas também para a comercialização da produção agroflorestal, aquisição de alimentos, itens industrializados, combustível para embarcações e recebimento de benefícios previdenciários e assistenciais.
Atividades de mineração, agropecuária, garimpo e extração ilegal de madeira agravam o risco às comunidades amazônicas ao colocá-las em contato com pessoas que transitam com maior frequência em centros urbanos, tornando-se vetores mais prováveis de transmissão.
O alcance limitado de muitos habitantes do interior aos meios mais simples de prevenção de contágio, como água limpa, sabão e álcool gel, em associação com a organização social em comunidades, pode resultar em elevadas taxas de contaminação e mortalidade em áreas sem qualquer cobertura hospitalar.
As imensas distâncias físicas, por rios ou estradas, nas partes mais remotas da região amazônica, desafiam não somente o acesso a centros de saúde especializados, que frequentemente estão localizados em outros municípios e requerem entre centenas e milhares de quilômetros de viagem, mas dificultam também a difusão rápida de informação qualificada, algo essencial nos tempos atuais.
Em muitas localidades mais remotas sem sinal de internet ou de telefonia móvel, os comunitários não podem ser municiados de informações básicas para prevenção à Covid-19. Sem a devida orientação em tempo hábil, como poderão identificar e isolar os infectados? Como poderão evitar a disseminação do vírus?
O cenário de crise sem precedentes impõe grandes riscos às comunidades rurais e aos povos tradicionais da região amazônica e são impulsionadas por um longo histórico de invisibilidade pelo restante do Brasil. As atuais políticas públicas de amparo social em tempos de pandemia não foram desenhadas nem adaptadas às condições dessas populações.
Tais riscos impactam também a floresta, dado o papel desses grupos sociais em sua conservação. O desmatamento e a invasão de áreas protegidas seguem aumentando, em um processo que se alimenta do discurso e das ações de tolerância de autoridades à ilegalidade. Nesse sentido, os vetores de degradação da floresta são os mesmos que têm favorecido a disseminação silenciosa do vírus, expondo ao risco máximo os brasileiros residentes no interior da Amazônia.
Joice Ferreira, bióloga, pesquisadora da Embrapa Amazônia Oriental, Belém
Erika Berenguer, pesquisadora Sênior nas Universidades de Oxford e Lancaster (Reino Unido), especialista em Florestas Tropicais
Ima Vieira, ecóloga, pesquisadora do Museu Emílio Goeldi, Belém
Mercedes Bustamante, professora titular da Universidade de Brasília
Thiago Medaglia, jornalista, fellow do Programa Knight de Jornalismo Científico do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e fundador da Ambiental Media
Este artigo é subscrito pela Coalizão Ciência e Sociedade, que reúne 73 cientistas de instituições de todas as regiões do Brasil.