Salles omite inventário de emissões de gases-estufa e quer alterar dados do agro
O 4º inventário de emissões de gases-estufa do Brasil está pronto e o país tem a obrigação de apresentá-lo à ONU até dezembro.
No entanto, em reunião do Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima (CIM), nessa quarta-feira (21), o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) omitiu a apresentação do documento e propôs adiar seu envio à ONU. A Folha apurou que o tempo ganho deve ser usado para alterar dados do setor agropecuário.
O atraso proposto por Salles implica em descumprimento do compromisso assumido pelo país na Convenção de Mudanças Climáticas da ONU – criada no Brasil em 1992.
Os países-membro da Convenção devem reportar a atualização das emissões de gases-estufa geradas ou removidas da atmosfera a cada quatro anos, o que permite à comunidade internacional calcular as projeções sobre o aquecimento global.
Os nove ministérios que compõem o comitê devem validar o inventário antes do reporte à ONU, mas Salles sinalizou que deve privá-los do documento, dizendo que “a data de divulgação será informada pela secretaria-executiva do comitê” – cargo ocupado por ele.
Apoiada por Braga Netto (Casa Civil), a fala de Salles teria incomodado Paulo Guedes (Economia) e Tereza Cristina (Agricultura), segundo fontes do governo.
A reunião foi iniciada apenas com ministros na sala. Salles teria barrado a entrada de assessores técnicos e até mesmo de Julio Semeghini, secretário-executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCTI), que deixou o cargo no mesmo dia. Segundo o decreto de criação do comitê, os secretário-executivos podem representar os ministros nas reuniões.
O MCTI é responsável pela elaboração do inventário, que contou com financiamento de US$ 7,5 milhões (R$ 41,2 milhões) do Green Environmental Facility (GEF) e implementação do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD).
O 4º inventário revisa os cálculos das emissões de gases-estufa desde 1990 e inclui novos dados de 2011 a 2016 – o período acrescentado é de estabilização das emissões brasileiras. O que incomoda Salles, no entanto, é a atribuição de emissões ao setor agropecuário.
Segundo fontes de três ministérios, Salles propõe passar emissões da agropecuária para outra categoria, chamada de mudança do uso do solo e florestas, onde já se contabiliza as emissões por desmatamento.
Ainda na proposta do ministro, atividades que contribuem para retirar carbono da atmosfera – como a recuperação de pastagens degradadas – deixariam de ser contabilizadas como mudança do uso do solo, passando a contar como pontos positivos para o setor agropecuário.
A manobra não altera a conta final sobre a contribuição do país para as emissões globais, buscando apenas melhorar os resultados do setor agropecuário.
A trama foi descrita por especialistas como “infantil” e “tempestade em copo d’água”, já que os dois setores são vistos pela comunidade internacional como uma mesma fonte de emissões.
Os números do setor também foram alterados por um outro artifício, usado em outro relatório: a atualização bienal das emissões (2018-2019), cujo reporte à ONU também é obrigatório desde 2014.
Sob responsabilidade do Itamaraty, o relatório de atualização bienal (BUR, na sigla em inglês), foi elaborado com base em diretrizes de 1996. Mas desde 2006 o IPCC (painel científico da ONU sobre mudanças climáticas) usa um padrão mais rigoroso.
O novo padrão considera fontes de emissões da agropecuária que antes não era contabilizadas – como resíduos de pastagens reformadas e do processamento de cana-de-açúcar – e também aperfeiçoa a contabilidade das emissões geradas por diferentes tipos de rebanhos – cujas emissões são maiores do que se imaginava pelo padrão anterior.
A mudança de método gera um salto de 20% nas emissões do setor agropecuário, segundo Ciniro Costa Junior, engenheiro da equipe de clima e cadeias agropecuárias do Imaflora e um dos autores do Seeg (Sistema de Estimativas de Emissões de Gases-Estufa). O Seeg acompanha e evolução de método do inventário, atualizando seus dados para anos mais recentes.
O setor agropecuário, que respondia pela emissão anual de cerca de 500 milhões de toneladas de carbono em 2018, segundo o padrão antigo, deve figurar com cerca de 600 milhões de toneladas em 2019, por conta do novo método.
A reunião do comitê conduzido por Salles aprovou o relatório bienal, que usa o padrão ultrapassado, e omitiu o 4º inventário, que foi elaborado segundo o padrão atual.
Segundo especialistas, o uso de padrões diferentes em cada relatório gera incoerências que não devem passar despercebidas.
Para eles, além do descumprimento dos compromissos internacionais, a preocupação é também sobre a perda de credibilidade dos documentos brasileiros na comunidade internacional.
Procurado, o ministro Ricardo Salles não retornou ao contato da reportagem.